Demorei muito para entender o mar sem ondas do Porto de Paranaguá. Parecia mais um lago a bater na borda elevada de paralelepípedo, que se alastrava pela cidade em ruas cujos abismos poderiam levar às águas domesticadas pela engenharia.
Uma delas separava-se do oceano por apenas uma sarjeta de pedra. Um simples palmo. Meu pai gostava de botar-nos medo passando de carro por ali. Certa vez, no local, havia um grande barco enferrujado. Fora retirado do fundo do mar, contaram. Aquele monstro de metal corroído era impressionante.
Ao longe, os navios cargueiros pareciam pequenos barcos, tão pequenos quanto este, de pescador, que agora nos leva. É uma canoa grande com uma casinha na proa, onde fica o timão. Dentro da casinha cabe apenas o piloto. Ao longe, no horizonte, outros barcos idênticos se multiplicam, diferenciando-se apenas nas cores. Basta olhar na linha d’água para ver as barbatanas dos tubarões, que frequentavam o porto para se alimentar dos restos que conferiam à região um cheiro insuportável - para quem não era habituado.
O barquinho ia, chacoalhando, até emparelhar com a enorme parede de aço que surgia no meio das águas. Atrás de nós, restava apenas um horizonte retorcido por pequenos telhados. Paranaguá era quase uma vila à beira mar. E um navio, de perto, parecia um milagre.
Ancorado junto ao cargueiro, o barquinho tornava-se minúsculo. As paredes imensas pareciam um arranha céu de metal e craca, de onde descia uma misteriosa escada de corda, por onde meu pai subiu, subiu e subiu.
Ficamos no barco, ciceroneados por um pescador que tentava puxar papo com aquelas crianças assustadas. Vimos outras barbatanas mas, desta vez, eram golfinhos. O barquinho balançava e nossa cabeça balançava junto, acostumando-se ao ritmo. Quando ficávamos algumas horas no mar, depois continuávamos sentindo o balanço mesmo em terra firme. Criança adapta-se fácil.
Não lembro quanto tempo demorou. Mas o sol baixou, e o mar foi ficando escuro. Mesmo assim, ainda víamos as barbatanas, só não conseguíamos mais diferenciar tubarões de golfinhos. Anoiteceu, meu pai desceu pela escada infinita e voltamos. Minha mãe, preocupada, brigou com o marido.
Paranaguá era cheia de mistérios. Vez ou outra íamos até a gruta do Rocio, onde existe uma igreja. Mas a atração principal era a gruta, capaz de curar. Era comum a presença de ex-votos, representações de pernas, braços ou mesmo fotos dedicadas à santa, Nossa Senhora do Rocio. Ninguém tocava em nada, apenas admirávamos.
No Rocio também havia uma quermesse famosa. Antes do aterro, o mar batia perto da igreja. Depois, o local ganhou uma praia ao longe. Visitei novamente já adulto, parecia outro lugar, ensolarado, sem o suspense da escuridão que parecia pairar eternamente ali. Nesta última visita, porém, um temporal veio do oceano derrubando placas, ameaçando com ventos extraordinários, tivemos que nos socorrer dentro da igreja. Até hoje acho que não há uma normalidade no Rocio. É residência de fatos extraordinários. E, se não me engano, pois esse texto é filtrado pelos prodígios da memória, foi dali que um padre partiu em voo cego com balões de aniversário, para nunca mais.
Nossa casa tinha dois andares, o de cima era um sótão de madeira dedicado às brincadeiras infantis. Minha mãe ficava tranquila embaixo, ouvindo os passos pesados de nossa correria lá em cima. Em um dos quartos do sótão, o mais escuro, montamos um laboratório de água. Consistia em vários recipientes de plástico, e nossa função era transferir o líquido de um para o outro com precisão científica. Se algo desse errado, o mundo poderia explodir.
Embaixo havia uma goiabeira ruinzinha de frutos, mas na qual eu gostava de subir. Em uma das raras fotos dessa época, estou na goiabeira, com trajes de festa junina, perto de meu avô, o seu Luizinho, cujo colete ostentava o inseparável relógio de bolso. Coisa de italiano.
Cercada por mar e rio, Paranaguá tinha terríveis temporais. Em um deles, a luz acabou e o telefone foi cortado. A água tomou as ruas e começou a entrar por baixo da porta da frente. Subimos os móveis, tiramos os tapetes. A enchente já chegava na canela, quando vimos uma enorme quantidade de água descendo a escada. Entrava por todos os lados, foi o primeiro momento de pânico, quando eu percebi que poderia morrer. No outro dia, ainda havia água dentro de casa e, na rua, onde costumávamos apanhar coquinhos, os automóveis estavam submersos.
Diariamente, andávamos até a fonte, construída no século 18. Contava-se, à boca pequena, que da fonte saía um túnel que seguia por baixo da cidade até o Rocio. No ano passado, vi uma reportagem no Youtube mostrando o tal túnel. Era verdade.
Quando os navios estrangeiros atracavam no porto, as famílias eram avisadas. A notícia circulava de boca e boca: chegaram os marinheiros. Geralmente, a gente se trancava em casa. Outras vezes, porém, ficávamos na varanda vendo aqueles rapazes de branco, com o quepe típico, andando entusiasmados pela cidadezinha, em busca de alguma aventura terrestre.
Por meses, moramos em frente ao Museu de História, uma quadra acima do Rio Itiberê. Lembro-me de frequentar o museu diariamente e, por conhecer os trabalhadores, conseguia circular pelas passagens secretas, que ofereciam pequenas aberturas voltadas para o rio, com espaço apenas para o cano das espingardas.
Ah, o Rio Itiberê! Com seu casario histórico e o mercado de pescadores cheirando a peixe, é um lugar inesquecível. Brincava diariamente nas areias do rio, perseguindo os “perus” - na verdade eram urubus que se alimentavam das carcaças jogadas atrás das barracas. Eu corria para pegá-los, mas eles se resignavam a fugir em voo lento, batendo preguiçosamente as asas.
Lá, também, meu pai comprava canoas de brinquedo esculpidas em madeira. Eu brincava com elas por horas, e às vezes lançava-as no rio para que fossem embora, seguindo o fluxo horizontal daquela beleza toda.
Havia caranguejos de água doce no Itiberê, e eles moravam nas margens próximas ao casario. Minhas irmãs conseguiam pegá-los pelo dorso, e me ameaçavam com as pinças em riste. Eu tinha medo, mas hoje acho divertido. Reparem que, na foto azulada pelo tempo, o caranguejo não disfarça o sorriso.
Neste apartamento, em frente ao museu, havia uma padaria embaixo, que estava fechada. Mas as ratazanas subiam pelo encanamento e tentavam entrar em nosso apartamento saindo pela privada. Dá para imaginar o medo que era ir ao banheiro.
Certa noite, com as cadeiras na calçada para espantar o calor intenso e úmido, fui sozinho até à esquina, onde me deparei com Dom Pedro I. Sim, era ele, e eu sabia. Estava com uniforme militar, azul e vermelho (são memórias, lembre-se), com bigode, costeleta e espadim. Estava parado, olhando fixamente para frente.
Voltei correndo para contar aos adultos, que gargalharam nas cadeiras, elogiando minha imaginação.
(Ranulfo Pedreiro, agosto/2020)
***Este texto é uma homenagem a Sérgio Sant’Anna.
Foto: caranguejo na Ilha do Mel (Ranulfo Pedreiro)
Parabéns meu irmão querido!! Você trouxe para a escrita, de forma simples e romântica, recordações adoráveis da nossa meninice. Continue!!
Viajei no tempo com essa crônica, que gostoso ter estórias pra contar e como é bom poder ter compartilhado isso com vc 😘