Trinta anos depois, me reencontro em um velho livro de Dostoievski
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  • Foto do escritorRanulfo Pedreiro

Trinta anos depois, me reencontro em um velho livro de Dostoievski

Atualizado: 26 de jun. de 2021


Li Os Irmãos Karamázov nesta mesma edição barata de banca, lançada em 1995, quando eu tinha 20 e tantos anos. A capa imitando couro foi ganhando orelhas com o passar do tempo e a diagramação econômica traz uma letrinha que me dá mais trabalho do que eu gostaria.


Mesmo assim, aproveitei cada página. Dostoiévski foi, por um longo período, o meu escritor favorito. Um dos motivos era justamente Aliócha, o protagonista, dividido entre o celibato e a degradação moral da própria família, à sombra do stáriet Zózima, um monge sábio, de aspecto divinal.


O pai, Fiódor Pávlovitch, que me parecia uma figura bonachona, hoje ressurge como um personagem decadente e triste. Eu nem me lembrava de Smerdiakov, o irmão renegado, que se tornou complexo e desesperado, um dos eixos da narrativa.


Há quase 30 anos, Dmitri Karamazov era um grande imbecil, mas hoje o seu purgatório faz todo o sentido, com os detalhes milimetricamente explicados durante o julgamento, na parte final. Lembro o impacto que me causou o aparecimento de Iliúchka, criança de comportamento adulto, cuja rebeldia acentua a selvageria de Dmitri.


Na época, a arquitetura do texto me parecia muito mais horizontal, carregada de personagens e cenários, excessivamente espalhada. Hoje percebo sua verticalidade, capaz de se aprofundar nos descaminhos da alma.


Enfim, estou falando superficialmente, mas com intimidade, sobre personagens que marcaram minhas andanças literárias.


A questão é que, três décadas depois, Os Irmãos Karamázov se tornou um outro livro, completamente diferente, embora a constituição dos personagens continue impecável.


Trata-se de obra ainda maior, da mesma forma que o leitor já não é o mesmo, acometido pelo tempo.


O mais bacana foi justamente me reencontrar na juventude, com uma visão arrogante de quem entendia tudo, devorando aquela edição novinha, ainda com cheiro de banca.


Agora, as páginas soltas são meus cabelos que embranquecem; as folhas exaustivamente viradas, minhas sobrancelhas que crescem mais do que deviam; a cola aplicada para que o volume não se desmanche lembra minha coluna em constante manutenção.


Os dois leitores que se encontraram no mesmo livro, ontem e hoje, parecem muito diferentes. Mas apenas um sopro os separa.

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