Por Ranulfo Pedreiro
As aulas recreativas do ginasial, nas manhãs de sábado, eram enforcadas em troca de um destino mais interessante: a chácara do Edson. A frase soava como um paraíso sem regras para um bando de pré-adolescentes: a chácara do Edson. Neto ou filho de japoneses, não sei ao certo, Edson morava à beira de uma represa, a alguns quilômetros do colégio onde estudávamos em Cambé.
Éramos um grupo heterogêneo e flutuante: Preto, Cachorro, Pinóquio, Gustavo, Galinha, Edson, Marinho, Pato, Gambá e Biba, entre outros, ávidos por correrias e bagunceiros convictos. Assim que despontávamos na chácara, devorávamos algumas das cenouras cuidadosamente irrigadas. Em seguida, tomávamos o rumo da represa, onde mergulhávamos com bicicleta e tudo. As bicicletas, aliás, eram abandonadas sob a água. Quando o sol ameaçava se pôr, tateávamos o chão do lago para encontrá-las. A do Gustavo, uma Caloi 10, enferrujou com a frequência do hábito.
Na chácara do Edson valia tudo: guerra de torrão ou mamona, brigas, pescaria, boias. Uma baita farra. Talvez, por isso, evitávamos a proximidade com a sede, um reduto de ordem e sabedoria. Quando, eventualmente, aparecíamos por lá, nos recebiam com um bom lanche da tarde.
Certa vez, uma cobra d’água abocanhou os peixes que pescamos. Triste fim: foi decepada com uma enxada. Em outra ocasião, a caminho da chácara, resolvemos bloquear o carreador com um punhado de pedras. Um sitiante nos perseguiu de caminhonete – estávamos em franca desvantagem, enfrentando uma subida a pé – e nos encontrou amoitados em um pasto alto. Tivemos que desmanchar a traquinagem e fugir enquanto era tempo. Duas outras barreiras, adiante, esperavam o sujeito.
O Edson era um camarada legal – há muitos anos não o vejo -, de riso fácil, bom aluno. Um dia, nos causou preocupação. Um raio caiu perto do garoto, que foi parar no hospital. Nada grave.
Ainda estávamos no ginásio quando ele me venceu em um concurso de redação. As últimas frases de seu texto estavam em japonês. Minha surpresa não foi a derrota, mas a descoberta de que, ao contrário do amigo, pouco sabia dos meus antepassados.
À noitinha, voltávamos empurrando lentamente as bicicletas, lembrando as aventuras do dia. Enlameados, verdadeiros tatus. Na segunda-feira, exibíamos orgulhosos as cicatrizes.
Éramos um grupo heterogêneo, com negros, magros, altos, loiros, japoneses e gordos. Tão heterogêneo que não fazia a menor diferença. Só pensávamos na chácara do Edson.
Comments