O fim de um radical
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  • Foto do escritorRanulfo Pedreiro

O fim de um radical

Eu tinha 16 anos, tocava mal uma guitarra Tonante e adorava heavy metal. Em especial, Yngwie Malmsteen, o guitarrista sueco que citava a marcha Rondo Alla Turca, de Mozart, em um solo cheio de exibicionismo.


Um amigo, que debulhava a guitarra, aconselhou (voz de trovão):

-Para tocar bem o metal, é preciso ouvir música clássica.


E lá fui eu, com alguns trocados na mão, em busca de um álbum barato de Mozart. Não existia celular, nem streaming. Era preciso ter o disco, grande, frágil, bonito e caro.


Na loja, havia um LP do grupo Musikantiga em promoção, justamente com Rondo Alla Turca no repertório. O disco foi lançado em 1975, em versão popular. Ou seja, baratinho e sem encarte. Mesmo assim, encalhou naquela prateleira dos anos 80.




Maestro Leo Peracchi assina os arranjos. Não há qualquer informação sobre os instrumentistas. Mas a versão de Rondo Alla Turca é ótima. Viva e atual. As referências se misturam e até hoje enxergo/ouço um pouquinho de jazz no ritmo. É o tal ouvido interno, pessoal e intransferível.


Eu não sabia que, na época da gravação, havia um revival da música pré-mozartiana, movimento que resultaria, inclusive, na criação do Festival de Música de Londrina, em 1979.


Aos poucos, fui me enturmando com as outras faixas do disco. Um Largo, de Veracini, abre o lado A, com rigor orquestral. Eu não entendia essa música, grande como um rio caudaloso.


Depois, vinha a Rondo Alla Turca tocada em flauta doce, oboé, celesta, fagote, viola, violoncelo, contrabaixo, cravo, órgão, trompete e flauta transversal. Que coisa linda! Os timbres são surpreendentes e percebi como vários guitarristas de heavy metal imitavam os instrumentos barrocos para alcançarem um som “medieval”.


Eu estava escutando música clássica, gostando e pensando... Uai, porque as pessoas não ouvem isso?


Hoje, coloquei o disco para tocar. Sim, eu ainda tenho. O encanto está lá, preservado nesta bolacha preta capaz de me carregar pelo tempo.


O inglesão William Byrd emociona em sua Pavana de harmonia simples, lenta e tocante, com as texturas da flauta transversal, corne inglês, fagote, flugelhorn e bombardino… Os sopros fazem o papel das cordas inexistentes.


Jean Baptiste Lully, italiano com jeitão francês, mais desinibido, arrasa na Gavotta, com um quarteto de flauta transversal, oboé, viola e contrabaixo. E não é que, no meio do tema, surge uma belíssima fuga, típica de Bach?


Sei que Gavotta, Largo ou Pavana são gêneros ou movimentos musicais de época. Mas o LP não traz mais informações sobre as obras completas. A edição econômica é capenga na arte, mas plena em riqueza musical.


O repertório segue com Purcell, Jacopo Peri, Haydn, Gluck… Rameau é incrível, com seu Tambourin, de forte acento medieval, um tema de espontaneidade trovadora.


Só achei que Bach foi maltratado. Não pela interpretação de Jesus Alegria dos Homens, mas pela escolha da música, tão saturada. Entendo que era preciso um apelo popular para vender o disco, como a própria Rondo Alla Turca. Mas Bach escreveu muito e oferece opções bem melhores.


O importante é que o LP me descortinou um universo. E não me afastou do rock. Ouço de Zilo & Zalo a Arvo Pärt, com muito Beatles no meio. Tá tudo bem.


A música antiga desarmou um radical.




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